Contar histórias ajuda crianças a crescer

Em entrevista, a psicóloga Renate Meyer Sanches explica como criar histórias para seu filho pode ajudá-lo a superar angústias


Para autora, histórias "personalizadas" permitem à criança nomear sentimentos e superar traumas

Mais do que entreter, o ato de contar histórias na hora de dormir pode ser mais saudável para seus filhos do que você imagina. Na verdade, as histórias podem exercer um fator de cura, fazendo com que as crianças entendam seus próprios sentimentos e aprendam a lidar com as dificuldades da vida adulta.
É o que defende Renate Meyer Sanches, autora de “Conta de novo, mãe – Histórias que ajudam a crescer” (Editora Escuta; leia trecho). Para ela, criar para seu filho histórias personalizadas, que representem os desafios do momento para a criança, é uma maneira valiosa de ajudá-la a lidar com sofrimentos e superar as fases mais difíceis do desenvolvimento infantil. Confira a entrevista com a psicóloga.

iG: Qual a importância de se contar histórias para uma criança?
Renata Sanches: O fato de você colocar sentimentos em palavras nomeia aquilo pelo que a criança passa e que, para ela, não tem nome – o que gera muitas angústias. Além disso, o sentimento passa a ser compartilhado com o personagem da narrativa e com quem está contando a história. A criança acha que só ela sente o que sente, por isso é importante compartilhar. O final feliz assegura para a criança que ela vai ser ajudada, dá tranquilidade para ela. E isso tudo é uma sabedoria dos contos de fadas e cantigas de ninar que vêm de séculos atrás.

iG: E quando os pais ou educadores mudam estas histórias clássicas para torná-las menos “agressiva” ou mais politicamente correta?
Renata Sanches: Isso vai na direção errada. É nas figuras feias e “malvadas” que as crianças projetam as coisas delas. O lobo, por exemplo, significa a agressividade oral da criança. Descrever o lobo bonzinho não adianta em nada. Atrapalha porque a deixa sozinha, sem ser compreendida nas angústias que ela sente.

iG: As histórias clássicas não podem tornar a criança mais agressiva?
Renata Sanches: A agressividade é um recurso do ser humano, é algo que todos nós temos. A questão é o que estamos fazendo com isso. Sempre comparo com uma panela de pressão: a agressividade é como a pressão, se você souber abrir a válvula em momentos certos, a pressão é ótima, te ajuda a cozinhar; se você não souber abrir, vai estourar. Esse estouro psíquico pode acontecer para fora, em crises de agressividade, ou pode estourar para dentro, em depressão, pânico ou somatizações. As histórias, o brincar, as músicas são válvulas de escape da agressividade para a criança. O brincar é fundamental: o fato de a criança ter brincadeiras agressivas não promove agressividade. A função do educador não é anular a agressividade, mas canalizá-la.

iG: Qual o melhor momento para se contar a história?
Renata Sanches: O momento tem que ser determinado pela relação de quem conta a história. Não precisa ser necessariamente na hora de dormir. Contei uma história para meu neto de quatro anos, por exemplo, num jardim, sentada numa pedra com ele no meu colo. O adulto vai perceber qual o momento bom. Às vezes a criança parece que não está prestando atenção, mas no fundo ela está muito ligada. Não é preciso fazer como na escola; não tem que necessariamente fazer a criança prestar atenção em cada letra. Quando ela está entretida com um brinquedo, por exemplo, não quer dizer que ela não esteja ouvindo. Mas é lógico que não dá para contar quando ela está brincando com os amiguinhos ou muito entretida em algum programa de televisão, por exemplo.

iG: Qual a melhor maneira de se contar uma história?
Renata Sanches: O melhor é usar um objeto para representar a criança. Se ela for pequena, não precisa de muita criatividade. Conta-se uma situação de acordo com o que a criança está passando e se inclui o sentimento dela na situação. Fala-se “então o ursinho sentiu vontade de fazer isso ou aquilo”, de acordo com o que a criança está sentindo. No final da história, tudo tem que dar certo. Se você seguir isso não tem como a criança entender errado. Como se tratam de questões mais afetivas que cognitivas, a criança irá entender como os adultos. Afetivamente, a criança é parecida conosco, cognitivamente não.

iG: Como funcionam os sentimentos das crianças?
Renata Sanches: Elas sentem angústias intensas. A criança pequena sente tudo que os adultos sentem: raiva, ódio, inveja. Isso é uma constituição do ser humano. A idéia de que a criança nasce anjo não tem nada a ver. Além disso, a criança é absolutamente egocêntrica, acha que tudo que acontece com o mundo tem a ver com ela. Esse funcionamento cognitivo traz problemas afetivos: qualquer coisa ruim que acontece no ambiente, ela acha que foi culpa dela. Para os pais, conhecer esse tipo de funcionamento ajuda a tranqüilizá-la. E é preciso ter cuidado para não entrar no julgamento moral: egocentrismo não é egoísmo. São fases da criança, e ela vai passar disso.

iG: Como os pais conseguem observar tais angústias?
Renata Sanches: Os pais devem dar espaço para a criança brincar – e observar a brincadeira. Eles devem ter alguma noção de quais são as questões e conflitos da criança. Para poder oferecer um desenvolvimento saudável para o filho, o principal é estar aberto para os sinais que ele dá: sonhos, olhares...

iG: Entre as “histórias prontas”, como as dos contos de fada, há algum preferido pelas crianças? Meninos e meninas preferem contos diferentes? Quais?
Renata Sanches: Cada conto de fada tem uma temática central. As crianças vão gostar de uma determinada história dependendo do que estiverem vivendo. João e Maria, por exemplo, trata de abandono. Crianças que se sentem ameaçadas de abandono ou crianças que estão em abrigos vão adorar a história. A criança vai pedir para você repetir quando gostar. Não se acanhe: a cada vez que você contar, de alguma forma, a criança estará elaborando sentimentos difíceis. E ela vai pedir para repetir até quando a história fizer sentido para ela.
Hoje em dia é difícil generalizar sobre a questão do gênero, mas, por exemplo, as histórias da Branca de Neve e da Cinderela lidam com lugares femininos. Quando o herói é mais forte e tem luta, as histórias são mais masculinas. Mas isso não significa que os meninos não gostem de Cinderela, afinal, todos temos lados femininos e masculinos que devem ser desenvolvidos. Ambos são úteis e bons.
iG: E qual a importância da criança contar suas próprias histórias?
Renata Sanches: Para a criança, ser o narrador da história é como brincar. É uma forma de expressão, de dar um significado e um formato para questões que são delas. Isso é saudável porque mostra que as angústias delas podem ser ouvidas, podem ter nomes e, portanto, que ela não está só.


Postado Camila de Lira, iG São Paulo | 30/12/2010 08:40

Comentários